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MAJOR ARCANA 2

The HIGH PRIESTESS

-Então!... Claro que sonhaste! Quando chegamos junto da carroça estavas a delirar como um louco! A rebolar na lama, com a tua cara a fumegar quando a chuva te escorria. Ainda bem que Ela nos autorizou a trazer-te para dentro. Isso não acontece normalmente, sabes?! Acho que nunca nenhum rapaz dormiu dentro destas paredes, imagina lá a tua sorte! Se calhar ainda estás a sonhar.

Dizia-me isto com o mais belo sorriso que alguma vez tinha visto. Uma rapariguinha, pouco mais nova que eu. Cabelos longos castanhos-claros faziam-me cócegas nos braços enquanto ela não parava, irrequieta. Tanto se sentava e ouvia a minha história como se levantava e dava pulos de alegria, entusiasmada com a minha exótica presença. Como ela, os olhitos pequenos e curiosos analisavam-me por completo, tentando sempre descobrir mais sobre aquele sujeito sujo e malcheiroso. Contou-me que tinha estado a dormir durante dois dias inteiros e que apenas me acordavam para me dar sopa à boca. Estávamos num colégio para meninas órfãs. Se calhar ainda estava mesmo a sonhar.

-Mas… quem é Ela? Perguntei ainda em fraqueza, sem entender ainda muito bem onde estava e como lá tinha chegado. - Calma, tudo a seu tempo… Ela é a nossa…. Mãe. - Disse-me a custo, quase como em segredo. Mãe? Perguntei. Já não ouvia essa palava há tanto tempo… Eu calculei que não. Disse a miúda num sorriso maroto. Como? E o sorriso deu lugar a uma cara séria: Não achas que estás a querer saber de mais? Estás sempre a fazer perguntas, aqui quem faz perguntas sou eu, estás no meu território agora, sobre o meu poder. Manteve o olhar sério no meus olhos durante uns segundos até se desembrulhar em mim com um abraço ternurento que me encheu de energia. Vá, descansa que ainda estás fraco e ainda tens muito que recuperar, tratar de matar essa fome e, sobretudo, afinar esses teus talentos todos.

Ouviu-se um barulho de escadas a ranger do outro lado de uma parede qualquer que me rodeava. Com a mesma energia e velocidade com que a miúda me iluminou os sonhos escondeu-se rapidamente no armário. Ao ouvir a porta a abrir-se deixei-me cair de novo num sono. Senti-me observado e ouvi a água que estava num vaso aos pés da cama a ser trocada. Senti uma fragância adocicada no ar que não consegui identificar. Quando pensei que já estávamos prestes a ficar de novo a sós uma voz feminina mas severa: Já de pé! Vamos, não há tempo a perder com visitas. Não tens lições para estudar? Vamos lá menina, que mania de incomodar o descanso dos outros. Vamos Margarida que não tenho o dia todo. Entreabri o olho esquerdo a tempo de notar no reflexo de um espelho uma enorme bofetada a atingir o rosto mais suave que alguma vez tocou o meu. Nem um ai saiu dos lábios bem desenhados daquele anjo importunador de sonhos. Saíram as duas em silêncio, com a porta pesada a ranger e a bater com uma força capaz de trazer à vida qualquer moribundo que ali tivesse deitado.

Mais uma vez sozinho, tentava juntar as peças daquele puzzle estranho. Estava deitado numa cama pequena que mais fazia lembrar um divã antigo de tão pequena que era e de tantos floreados que tinha nas suas tábuas estruturais. Ao fundo do quarto estava um guarda-fatos junto da janela e perto da cama uma mesinha com um pequeno espelho de prata fazia de cabeceira. No chão estavam toalhas molhadas e outras estavam penduradas a secar. Tinha um aspecto limpo, apesar de ser fácil de notar que era mobília barata talvez em segunda ou terceira mão.

Tentei levantar-me e dirigir-me à janela quando ouvi uma melodia a ser cantada em uníssono por vozes femininas. Ao sentar-me senti uma fraqueza na cabeça. Como que a ser requisitado para uma sessão urgente na dimensão dos sonhos, o transe tomou conta do meu cérebro. Deixando a minha mente num turbilhão de dúvidas que viriam a germinar no terreno fértil que era o meu jovem coração. Acabei por adormecer, subjugado pela fraqueza de uma doença mal curada.

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