Borboleta Negra
O dia avizinha-se sozinho e cinzento. Um ar quente e pesado tornava a respiração difícil, a chuva primaveril estava aí. Uma guitarra anunciou e acompanhou a curto dilúvio. Levou-nos a conhecer varandas sempre acompanhadas de maços de 100%’s e uma garrafa de vinho. A batida acelerada inspirava curiosidade. Nada de coisas normais, nada de desistências ou lamentos triviais. Era experiente e apesar de o saber não se colocavam em nenhum tipo de pedestal. Em doses duplas e sempre a espreitar e a agitar núcleos atómicos, os olhares eram interceptados, analisados e bem recebidos.
Intoxicados gostamos de partilhar musica, ideias e, quando convém, vidas. A língua não parava e a imaginação ajudou à festa. Não haviam mãos a medir nem tempo a perder. Cantavam mundos familiares para serem recordados, mas o vinho dificultava este processo. Entraram, sentaram e criaram um fogo no meio de uma enorme satisfação. Enquanto se levantava o véu só imaginava quanto é que custava o seu céu. Na primeira noite o Demo tinha ficado a dormir e, por isso, a imaginação voou. Levou a raras e improváveis trocas de esperanças. Beijos foram adiados devido a cansaços artificiais para deixar passar a noite e esperar a Lua cheia.
A noite trouxe o véu e instalou-se a ilusão de uma possível proximidade. Anestesiado, a realidade afastava-se enquanto seres estranhos faziam-me correr atrás de uma fuga à realidade que me roubava o tempo. Asas gigantes iridescentes anunciavam o oculto e deixavam dúvidas sobre qual caminho teria de ser conhecido. Tons de azul e verde encadeavam e como faróis iluminavam o meu ser dormente. A caminhada pelo vale místico conseguia ser reveladora de destinos, mas apenas alguns sabiam ler as mensagens. A maioria encosta-se, de olhos semicerrados, à almofada para depois, em estados purgatórios, deixar escapar pistas sobre pensamentos quentes e desejos mais profundos.
Uma nuvem negra cruzou o céu iluminado por uma intensa lua cheia. O destino soprava forte e logo o céu virou breu. O verdadeiro tecto, ainda iluminado confundia-se com pedaços de algodão flutuantes, enquanto as nuvens engoliam os últimos túneis de luz. Durante isto uma borboleta prepara-se para nascer. No dia certo. Da cor certa. Negra, feita para matar. O sonho ficou marcado por um gigantesco contraste de emoções quando, pela primeira vez as asas abriram as portadas da janela e deixaram entrar no quarto todos os sóis de uma galáxia. Tão rápido acordei, como voltei a adormecer. Tranquilo por saber que tudo não era um sonho.
De alma lavada e sintonizada com a realidade, esta assim se manteve até que o poder negro começou a germinar. À medida que a Lua Cheia se ia insuflando, pinturas e preparações deixam o palco pronto para a grandiosidade final. Espectadores esperam expectantes que o filme seja tão bom quanto o anúncio. Nada poderia fazer prever a cena roubada de um filme – de par em par, as asas acabadas de sair do período de casulo, vão sentindo e apalpando o ambiente. O ambiente aprova e sorri maravilhado, já cego e começando a sentir-se apoderado pelo demónio que resolvera visitar uma svelhas amigas. Igualmente traiçoeiras, igualmente mesquinhas, igualmente esfomeadas.
Pairavam e sentia-se a energia a condensar junto das suas asas. Subtilmente, a sua presença tornava-se algo mais do que unicamente confortável. O sorriso e o toque na pele conferiam uma enorme potencialidade orgânica a um momento de simbiose. Tudo a ser partilhado – a perfeita ilusão do casamento numa dança em busca do odor perfeito que leva a criatura de flor-em-flor, deixando um rasto de destruição por onde passava. Sempre ao ritmo orquestrado do diabo, os equilíbrios iam sendo perdidos para que no meio de tropeções e quedas, expressões e frases fujam do bolso fundo que é a consciência. Se calhar já é demoníaco demais para ti, dizem elas preocupadas com o que já estava destruído.
Não, ainda temos um jogo para jogar. Elas sabiam qual era. Elas jogavam melhor. Elas ganharam. Desinibido como um polvo, as cartas mostraram que é fácil enganar e fugir de tentáculos intoxicados. Voaram na minha cabeça e eu voei na delas, encontramo-nos num sítio distante e pouco familiar mas com certeza confortável e aliciante. Cansaram-me, levaram-me a acabar com a fonte do líquido inflamável que alimentava todo aquele circo. Exausto de sonhar e de todo o êxtase inerente, deixei que a borboleta me indicasse o caminho da luz, para só depois reparar que aquele tipo de borboletas gostava de viver à volta de candeeiros solitários, que dão luz poética ao negro da noite e se extinguem nas manhãs.
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