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MAJOR ARCANA 1

The Magician

Aproximem-se Senhoras e Senhores, que isto é ver para crer! Cheguem-se meninos e meninas que coisas destas não passam na televisão. O Fantástico, o Incrível, o extraordinário está para acontecer. Enquanto olharem ou pestanejarem em busca de uma pista já o transcendente aconteceu. Relaxem e deixem-se maravilhar. O olho não acompanhará nunca a velocidade da acção. Prometo magia, caro público. Magia daquela que vos faz sonhar, mas tenham cuidado e não se percam no jogo de cintura e de cores, pois o erro e a morte balançam num namoro frágil com o sucesso. Peço que vos deixeis encantar com este mundo do mistério e do oculto. E que pulmões não me faltem para estar aqui no final para vos dizer a todos “até à próxima”. Atentos pois então.

Durava cerca de vinte minutos. Costumava ser escolhida a rua mais movimentada por motivos óbvios. A frase de boas vindas era da autoria de um avô qualquer. Repetida tantas vezes por se saber que funcionava: numa tarde boa sem chuva conseguiam à volta de 50 moedas. Nada mau, comparado com pagamentos de uma moeda à hora nos escritórios.

Quem geria tudo era o Mágico. Capaz de truques inacreditáveis, a sua capacidade de contar histórias, aliada a uma técnica genial, maravilhava quem passava. Contavam-se histórias de como tinha sido um verdadeiro casanova e que nenhuma miúda, que lhe ouvisse as palavras, conseguia escapar ao toque dos seus dedos. À sua volta uma energia emanava e a sua eloquência captava qualquer um. A sua individualidade era plena, talvez por isso nunca tinha casado. Era capaz de inspirar aqueles à sua volta, enfim, o Mágico dominava e sabia disso.

A primeira vez que ouvi o seu anúncio era eu um tocador de acordes de rua a tentar alimentar um sonho com ovos estrelados e tostas mistas. Ainda tinha 15 anos. Vi o espectáculo uma vez e no fim mantive-me estático. O vazio que tinha no estômago deixou-me um pouco em transe com aquela ilusão e fiquei parado com desejo de ver mais. E vi. Passadas duas ou três cópias, o culpado pelas minhas dúvidas notou em mim.

No meio da multidão, durante as apresentações, dois ou três estafermos rondavam os espectadores, cada um com o seu chapéu esfarrapado estendido. Esperavam a chuva divina. Ela, normalmente caía abundantemente, quando não caía mãos ágeis tocavam os ramos da árvore das patacas dando novos destinos a frutos ainda por amadurecer.

Tantas vezes me abordaram sem resposta que uma desconfiança começou a crescer, sentiram que percebi o esquema e encostaram-me num canto. Riram-se por o meu aspecto ser ainda pior que o deles. Só quando perceberam que nada tinha em mim que um deles começou a oferecer toques menos carinhosos. Antes de me tentar estender com uma bofetada de mão aberta, fechei os olhos à espera de sentir o ardor na minha face e já estava a espera de sentir o meu crânio na terra batida de um beco qualquer, quando a minha respiração ofegante foi evidenciada por um silêncio. A mão tinha sido parada no tempo e no espaço. Intenções destruidoras e cheias de raiva foram neutralizadas por uma energia superior.

O Mágico murmurou algumas palavras e as três hienas desapareceram. Pedindo desculpas ofereceu-me do seu almoço. Recusei ainda assustado. Ele perguntou-me porquê e eu respondi que preferia que me ensinasse um truque rápido. Riu-se mas assim fez. Passados 10 minutos já eu sabia baralhar aquelas cartas. No fim disse-me, com a mão na minha cabeça, que fui inteligente, pois agora podia viver para além de uma guitarra velha. Fiquei curioso, pois como saberia ele da minha situação? -Eu sei tudo e vejo tudo. Disse ele. – A minha condição requer um olhar muito especial perante o mundo à minha volta. Um dia serás capaz de aprender a ver através das pessoas. Depois disso, e digo isto pois sei que não és fraco, cabe-te a ti decidir sobre o que é bom ou que é mau. O quer isso dizer, bom ou mau? – Não sei, depois conta-me. Até à próxima.

E assim foi, desapareceu como tinha aparecido, com magia. Continuei a viajar até ser de noite. Deambulei sem destino pelas ruas que me pareciam familiares, sempre no transe da fome. Acho que acabei por adormecer ao abrigo de uma carroça perdida num descampado. Naquela noite choveu como nunca, e não sei porquê, foi das noites que mais sonhei.

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