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1899

1899 - Dizia na fachada de um edifício tipicamente europeu. Bem ao estilo clássico de Viena, ou melhor, que Viena copiou do resto da Europa. Apesar de elegante, os anos e décadas não foram misericordiosos. Do alto da sua fachada trabalhada e adornada a degradação não fora escondida. Como um lobo amestrado e envelhecido, tinha perdido a importância e a vida bucólica de antigamente - em que era o ex-libris do quarteirão - para agora se resignar a ser um local de passagem de amantes domingueiros. Ainda era motivo de exclamações, mas agora por estar à mostra o seu esqueleto e não pela sua cor amarela que costumava vibrar com a luz do pôr-do-sol. Faziam-lhe companhia as aves cantantes de um parque próximo que voavam em círculos junto da chaminé quando este mostrava sinais de uma respiração cansada. Dava a impressão que a história era absorvida pelas paredes, existiam marcas de balas e tijolos espreitavam por entre brechas no estuque velho que descascava. As janelas, grandes, lembravam os olhos verdes de uma mulher experiente, com as cortinas semicerradas, de modo a entrar o sol, mas sem que os curiosos pudessem ver a alma do ser imponente. Reflectindo.
Era velho, e bonito por isso.

2- Correndo atrás dos raios de sol, íamos descobrindo parques e encostas verdes em que a natureza era ela mesma. Logo pela manhã aquecíamos a terra húmida. Como nós dois haviam vários e ao sentar cansados tínhamos sempre tempo de contemplar a vida a ser partilhada antes de voltar à ilusão do trabalho de escritório. A cidade não nos pertencia, mas fazíamos de conta que sim, tentando, nua ironia infinita, ignorar a beleza do que é ser insignificante.

3- As silhuetas dos habitantes do parque iam-se confundido com as sombras das folhas e ramos que dançavam com o vento. A sonolência de uma noite passada sozinho cegava-me e aconchegava um manto cinzento em tudo o que os meus olhos tocavam, sem que estes cessassem de procurar por um batom vermelho. Tinha-me falado das incertezas de um amor que não o era. Apontou-me possibilidades inalcançáveis, desenhando mapas e trazendo o horizonte até mim. O porto seguro ficava para trás, à medida que as correntes de um mar alto se evidenciavam. À deriva, a esperança tinha-se apoderado do leme, sendo que bastava sonhar para combater na batalha já perdida contra a saudade. A arte de tudo dizer com um olhar, a paz de um silêncio partilhado, tudo se condensava num sorriso mortífero. Como uma ponte abandonada, sem caminho de ida ou de volta, que apenas servia para dar abrigo a monstros nas suas sombras, ou simplesmente para iluminar e confundir a mente de quem é observador e apaixonado pela arte. Ela inspirou-me, servindo de porto de abrigo numa ilha rodeada de escuridão.

4- No interior do edifício a realidade era outra. Molduras que à primeira vista pareciam nada ter em comum umas com as outras conseguiam vibrar o ambiente e criar um sentimento ordenado dentro do caos. Encaixadas umas nas outras, a história de uma opunha-se às demais. De perto, o preto e branco entristecia quem as analisava, sendo que era necessário dar um passo atrás para perceber que o sépia se misturava com o papel-de-parede. Apesar de a mobília ser reduzida não dava impressão de vazio, bem pelo contrário. Sem corredores, era necessário ir de sala em sala para conseguir perceber o interior. Com um salão rodeado de um escadario de boas-vindas a arquitectura fluía desde a coluna vertebral central para os episódios que a rodeavam. Um cheiro adocicado levava os curiosos a procurar a origem, alguns perdiam-se lá dentro ao encontrar quartos ou salas confortáveis, apenas os mais apaixonados conseguiam encontrar o vale, escondido por um dossel.

5- Não se perdia tempo. Procurava-mos sempre aquilo que era reservado apenas às almas mais livres. Num voo errático, passando por tempestades silenciosas e raios de sol que queimavam, tornávamos voos solitários em grandes revoadas. Às vezes a maré fazia-nos adormecer na areia, às vezes acordávamos em alto mar. O sol indicava o caminho, directo ou reflectido, mas nem sempre lhe dávamos ouvidos - só para lhe mostrar que quem tinha o poder era-mos nós. Os sorrisos não eram constantes - era o preço a pagar por tal leveza. Mas que isso não se confunda com fragilidade, pois sabia-mos das inconsistências do contínuo espaço-tempo.

6- Ao tentar beijar-me desviei a cara. Não querendo dar dramatismo a todos esses beijos que se perdem do destino final, mas sim evidenciar que a verdade anda sempre de mãos dadas com a incerteza. Um adeus esconde-se por trás de um sorriso. Um pássaro nunca sabe se está a ser alvo de um caçador faminto. Pior é quando esse caçador só o faz por desporto. Quando fins são manufacturados e planeados é quando o Diabo sorri.

7- No Domingo juntou-se. Comeu-se. Bebeu-se. Dormia-mos em sintonia quando um relâmpago inundou o sonho. A unidade tem sempre o seu oposto e por isso celebra-se o final de um ciclo

8- Tempos de paz e engorda. Uma tentativa incessável de alcançar a conquista total da imaginação. Apalpadelas num jogo cego de quem-é-quem dão noções de realidades. Realidades que às vezes não são compreendidas pois não pertencem à mesma dimensão.

9- Ventos quentes se aproximam. O capitão anuncia que a bandeira negra será içada. Iremos à conquista desse mundo que a cada suspiro muda e cresce para melhor. Ventos que nos acorrentam. Ventos que nos movem. Ventos que nos fazem vivos.

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